quinta-feira, 8 de maio de 2008

ENXOVAL UMA CULTURA FEMININA

A ausência de algumas tradições pode ser mais preocupante do que se imagina. Não comprar ou não ganhar o enxoval, por exemplo, pode até gerar uma perda de identidade
Desde que fomos tomados pela cultura moderna, onde as funções sociais e econômicas perderam as suas características de gênero e as mulheres submergiram de cabeça no universo profissional assexualizado, estamos nos desfazendo de uma memória bem antiga, que nos leva à época de quando a mulher fazia o ponto de ligação entre a casa e a rua. Se, por um lado, somos muito mais independentes, capazes de gerir o nosso destino e daqueles que estão à nossa volta, a contrapartida para tanta autonomia é o anonimato do mundo cibernético e globalizado, que não despersonalizou somente os seres humanos, mas, os ambientes, as comidas, as músicas, tudo o que nos cerca. Mas, isto é outra história.O nosso ponto é que a cultura feminina deslocou-se, no tempo recorde de apenas um século, da vida privada à vida pública - desfazendo-se, com isto, de todos aqueles papéis que julgamos hoje serem repressores, passivos, diante da esfera do trabalho e dos ganhos financeiros. De paletó ou em um pretinho básico, cabelos curtos, ambição à vista e a prazo, as mulheres ganharam sua identidade masculina, o que foi fundamental. Mas, ainda carecem de identidade própria, algo do tipo: ter poder, mas também ser sensível, será possível?O passado pode nos fazer pensar sobre esta perda de identidade, e a exemplo da filosofia e da arte, pode nos ensinar que nem tudo que fazíamos "antigamente" tinha pouca importância e deve ser jogado fora preconceituosamente. Pois, naquele mundo interiorizado das casas, vivido pela mulher até meados do século XX, regíamos as relações amorosas e sociais de nossas famílias. Recuperar esta história é dar-se conta que éramos senhoras de saberes muito delicados, bordados pelo silêncio e simbolizados nas formas, incluindo-se aí a fabricação dos artesanatos, comidas, utensílios, etc. Os enxovais representam uma tradição que vem cada vez mais se perdendo e, com ela, parte de nossa história feminina.Os enxovais eram feitos pelas mulheres da família e presenteados à noiva no dia do seu casamento. A palavra enxoval vem do árabe - as siwar - que quer dizer utensílio, mobiliário. Através de documentos antigos podemos ver que os enxovais refletiam o nível econômico de um grupo social, como também testemunhavam a cultura material de uma época. Se perguntarmos às nossas avós, vamos ver que receber ou possuir um enxoval era essencial para uma mulher. Muitas vezes, condição sine qua non de um casamento, por estar no enxoval o objeto ritual mais importante da união - a camisola da lua de mel.Até a década de 30, no século XX, era quase inconcebível pensar no casamento sem o enxoval, por mais simples que este fosse. Como a melhor perspectiva para uma mulher era casar e ter filhos, quando a moça fazia a primeira comunhão, começava-se a fabricar o enxoval. Nos tempos mais remotos, quando não haviam os fios industrializados, as lições começavam pela roda de fiar. Primeiramente, confeccionava-se os fios para depois aprender os pontos do bordado. Como as mulheres não trabalhavam, havia tempo de sobra para todos estes procedimentos. Com o fio industrializado foi possível criar novos pontos de bordado e os desenhos ficaram mais ricos. Todos os panos, dos lençóis à camisola, eram brancos, como os temas bordados também. Tinham, também, que ser novos, como os noivos, para que a relação tivesse sucesso.Em todos os objetos que se incluísse no enxoval havia uma técnica comum. Primeiro, bordava-se e/ou pintava-se a primeira letra do nome dela, para quando tudo tivesse decidido, se incluísse o nome dele. Se a família fosse abastada, as iniciais eram substituídas pelo brasão da união familiar.Até o início do século XIX, não dar um enxoval à uma filha que estava para casar, era deixá-la partir quase nua. A composição dos enxovais variava conforme o grupo social, a região e a época. Para as famílias pobres, esta obrigatoriedade do enxoval gerava situações ora interessantes, ora trágicas. Se a família do marido aceitasse a pobreza da nora, todas as mulheres da vizinhança se reuniam e recolhiam tecidos que eram por elas bordados e davam de presente para ela. Mas, se a falta do dote não fosse perdoada pela família do pretendente, o casamento não se realizava.Já em relação às famílias ricas, o enxoval englobava todo o mobiliário do quarto de casal, como também alguns móveis essenciais para a casa, como a mesa de jantar, os sofás e em caso de separação ou viuvez, este patrimônio voltava para a mulher. As peças eram minuciosamente discriminadas no contrato do casamento para que no futuro não houvesse dúvidas de que elas estavam intimamente ligadas à sua dona.As lingeries são uma novidade do século XIX e, com elas, fazia-se a passagem do saber sobre o uso do corpo na sedução do homem. Através do corte, do comprimento e de detalhes decorativos, a mãe ensinava à filha o que deveria ser revelado e escondido de sua sexualidade. Neste sentido, apesar de não ser composto por palavras, o enxoval era, na verdade, uma linguagem fundadora do que era pertinente do ser feminino.O sentido do enxoval (os lençóis e a cama, a camisola e lingeries ) é claro: estimular a sensualidade do casal. O interessante é que todo este saber estava controlado pelas mulheres e era transmitido de maneira especial entre mãe e filha. Esta ligação amorosa e feminina dispensava as palavras e preenchia uma vida aprisionada. O enxoval era uma tarefa da mãe, tão importante quanto alimentar e vestir os filhos, ao mesmo tempo em que era o assunto principal da filha, que ia crescendo, amadurecendo e dando concretude à sua vida futura de mulher, na mesma medida em que seu quarto e objetos pessoais iam ganhando forma e sentido.Por fim, se por um acaso faltassem recursos para completar o enxoval, era muito comum que a menina-moça prestasse serviços em busca de uns trocados. Trabalhava como costureira ou bordadeira, e outros serviços, que lhe permitisse dar continuidade ao seu enxoval. Como pode esta tradição quase desaparecer? Pasmem, na Europa, com a Segunda Guerra Mundial, que inviabilizou, por motivos óbvios, o costume. Nas Américas, com o início das lojas de departamento, que tornou mais barato e fácil à compra de produtos pré-fabricados.Símbolos dos tempos onde a mulher nascia e morria para casar, os enxovais devem ser vistos também como uma verdadeira experiência de alegria e redenção das mulheres durante muitos séculos. Ao mesmo tempo em que eles representavam uma vida isolada, eles refletiam, através de suas formas delicadas, um ritual através do qual era possível exercer o prazer de criar. Mariana Várzea
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Um comentário:

Ilda disse...

Excelente, gostei de ler.